Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência Social no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa
Por Coryntho Baldez
Com
argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que
encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar,
uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do
sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006,
segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social - que
abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência - foi
significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse
excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente
de ordem financeira - condena a professora e pesquisadora do Instituto
de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado "A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 - 2005" (leia a tese na íntegra).
Nesta
entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera
insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e
mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um
combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
Jornal da UFRJ:
A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento
econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como
essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
Denise Gentil:
A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques
às instituições do welfare state (Estado de Bem- Estar Social)
tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a
crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou
terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as
sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a
distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para
se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos
mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um
sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em
princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O
principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais
de proteção social, construídos num período de crescimento do
pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os
quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória
demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um
problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um
mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não
ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de
impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do
capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países
da América Latina.
Jornal da UFRJ: No Brasil, a
concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada
insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas
pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente,
explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o
cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia
nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o
arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do
resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de
contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que
incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos
benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no
entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso
está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e
acintosamente não é levado em consideração.
Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?
Denise Gentil:
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De
acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo
de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit
foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que
abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é
muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade
alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos,
cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do
limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).
Há
um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é
desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito
debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de
interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da
Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que
envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria,
assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da
Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa
apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar
despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.
Por
isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a
redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de
juros, para liberar recursos para a realização do investimento público
necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e
milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com
benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em
debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento
econômico e de valores sociais.
Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de
Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa
questão. Isso é proposital?
Denise Gentil: Há
uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que
propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é
parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É
parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela
Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania,
ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto
de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de
construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de
elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de
hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das
políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo
suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei
antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo,
um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto,
ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado,
decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na
invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao
Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou
temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter
renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais
evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas
circunstâncias.
Jornal da UFRJ: E são recursos que retornampara a economia?
Denise Gentil:
É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que
uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer
dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de
alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna
das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção,
estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios
previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O
baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno
Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e
os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente
representa quase 8% do PIB.
Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
Denise Gentil:
A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores
empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o
faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficouconhecida como
o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de
seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente
por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável,
inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa
salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de
receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo
econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão
da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na
tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo
para as de menor.
Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
Denise Gentil:
É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não
são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os
recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente
tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o
orçamento fiscal.
Jornal da UFRJ: O governo não executa o
orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição,
incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar
recursos da área social para pagar outras despesas?
Denise Gentil:
A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o
orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de
investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução
orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento
chamandoo de "Orçamento Fiscal e da Seguridade Social", no qual
consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com
isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da
Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o
mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União.
E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o
resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse
artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais
recursos para cobrir o "rombo" da Previdência. Como a sociedade pode
entender o que realmente se passa?
Jornal da UFRJ:
Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que
vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a
Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?
Denise Gentil:
Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um
isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não
pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo
para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso
mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF
entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora
muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas
também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política
previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a
aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente,
resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada
como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um
campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não
estão suficientemente consolidados.
Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Denise Gentil:
Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse
assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da
Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo
fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da
previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência
for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos
lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai
conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem
organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver
mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
Jornal da UFRJ:
A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia
de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento
de redução dos desequilíbrios sociais?
Denise Gentil:
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os
desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários
estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como
mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades
sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de
cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são
significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios),
cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são
contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de
forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser
feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na
velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a
população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os
benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito
embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar
condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do
salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e
atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos
e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são
beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm
direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.
Evidentemente
que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade
histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais
profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a
pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente
fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre
ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico
é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito,
temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das
desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos
anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada
através de certos indicadores.
Jornal da UFRJ: Apesar do
superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo
capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como
dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos
últimos anos?
Denise Gentil: A questão
fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o
crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua
equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja
risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é
preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a
renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social.
Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar
no debate sobre "crise" da Previdência. Não temos um problema
demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para
promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.