Logo após os atuais deputados federais e senadores assumirem seus
cargos, publiquei uma lista de dez coisas que essa legislatura – que já
despontava como um vetor de retrocessos sociais históricos – poderia
fazer em quatro anos para nos devolver ao Brasil Império. A relação era
propositadamente exagerada. Pelo menos, foi o que pensei:
1) Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa
2) Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores
3) Redução da maioridade penal para 16 anos
4) Proibição de adoções por casais do mesmo sexo
5) Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição
6) Redução da idade mínima para poder trabalhar para menos de 14 anos
7) Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal
8) Aprovação da pena de morte
9) Fim do voto feminino
10) Revogação da Lei Áurea
O problema é que a realidade é muito, mas muito pior, que a ficção. E boa parte das propostas está em andamento.
Vejamos a atualização da situação delas:
1)
Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa: Aprovada
pelo Congresso Nacional e sancionada por Michel Temer. Para uns crescimento, possibilidades e dinheiro no bolso. Para outros, precarização, instabilidade e redução de direitos.
2) Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores: Em andamento. Deputados
tentam aprovar mudança constitucional que transferirá do Poder
Executivo para o Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação
de territórios indígenas (PEC 215/2000),
dificultando a devolução de terras a esses povos. Enquanto isso, segue o
massacre de indígenas em Estados como o Mato Grosso do Sul.
3) Redução da maioridade penal para 16 anos: Em andamento. O Senado Federal está analisando Propostas de Emenda à Constituição, como a PEC 74/2011,
que tratam do assunto. Um dos projetos aprovados pela Câmara dos
Deputados ficou famoso: após sofrer uma derrota em um projeto com esse
objetivo, o então presidente Eduardo Cunha (hoje, preso pela Lava Jato)
manobrou para que fosse votado novamente no dia seguinte, obtendo
vitória.
4) Proibição de adoções por casais do mesmo sexo: Em andamento. Esse
pode ser um dos desdobramento do Estatuto da Família (que restringe
esse núcleo social à união entre um homem e uma mulher), que está
tramitando na Câmara dos Deputados. O PL 6583/2013 é extremamente ofensivo a famílias formadas por qualquer modelo além de um homem e uma mulher.
5) Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição. Em andamento. Há
diversas propostas tramitando na Câmara e no Senado para reduzir o
conceito apenas à privação de liberdade. Ou seja, tratar a pessoa como
um instrumento descartável de trabalho, submetendo-a a condições abaixo
de patamares mínimos de dignidade, deixaria de ser considerado pela
fiscalização como escravidão contemporânea. Atendendo a essa
antiga demanda da bancada ruralista, o governo Michel Temer publicou uma
portaria com o mesmo efeito, dificultando a libertação de
trabalhadores. A portaria foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
6) Redução da idade mínima para poder trabalhar para menos de 14 anos: Em andamento. Pelo
menos três propostas de emenda à Constituição para reduzir a idade
mínima para a contratação de adolescentes tramitam no Congresso
Nacional. Já que não podemos garantir qualidade de vida a eles, que
trabalhem.
7) Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal: Em andamento. Uma
comissão especial da Câmara dos Deputados votou, nesta quarta (8), uma
mudança na legislação que dificultará o aborto legal. Foi aprovado que a
vida começa na concepção, o que pode restringir o direito à interrupção
da gravidez, previsto em lei, para casos de estupro e risco de vida
para a mãe, e por decisão do Supremo, para casos de anencefalia. A
alteração, proposta pela bancada do fundamentalismo religioso, terá
que ser aprovada no plenário das duas casas para passar a valer.
8) Aprovação da pena de morte: Na teoria, impossível, mas na prática… É
uma questão de tecnicalidade, a bem da verdade. Porque a pena de morte
já é adotada no Brasil para quem é pobre, negro e jovem. Como mudar esse
item na Constituição Federal é muito difícil, a não ser em época de
guerra com outros países, então tiveram que ser inventivos. O Congresso
aprovou e Temer sancionou a lei 13.491/2017 que transfere
à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das
Forças Armadas em missões, como a que está ocorrendo no Rio de Janeiro.
Ou seja, pelo texto aprovado, se um militar matar um civil durante uma
operação em uma comunidade será julgado pela Justiça Militar e não mais
pelo Tribunal do Júri, como todos nós. Tem rabo e focinho de
impunidade. Isso sem contar que, com aprovação de mudanças no Estatuto
do Desarmamento, que estão sendo defendidas por nobres parlamentares da
Bancada da Bala, somada à crescente sanha de linchamentos, a pena
capital fica praticamente permitida.
9) Fim do voto feminino: Impossível, mas a política segue um clube de homens… As
mulheres são minoria no Congresso Nacional, nas Assembleias e Câmaras
de Vereadores, sem falar de cargos executivos e no Poder Judiciário.
Poucos partidos possuem políticas claras para garantir a quantidade de
candidatas previsto em lei e possibilitar a elas a mesma competitividade
que a dos homens. E, por isso, têm sido punidos pela Justiça Eleitoral.
10) Revogação da Lei Áurea. Era piada, mas com as propostas de reformas na legislação trabalhista… O
Brasil teria que ir contra uma quantidade tão grande de tratados e
convenções internacionais que, certamente, seria expulso das Nações
Unidas e não conseguiria exportar nem sacolé. Mas considerando que nunca
conseguimos inserir socialmente a população libertada no final do
século 19 e seus descendentes continuam a ser tratados como carne de
segunda, a sofrer todo o tipo de preconceitos e a receber bem menos que
os brancos pela mesma função, segundo dados da Organização Internacional
do Trabalho, então questiona-se que tipo de abolição foi essa. Além da
tentativa já citada do governo para dificultar a libertação de
trabalhadores em situação de escravidão contemporânea, o projeto de lei
de reforma da legislação trabalhista rural contava com pontos polêmicos,
como a possibilidade de ''remuneração de qualquer espécie''. Ou seja,
casa, comida e fumo. Diante do repúdio público, os defensores do projeto
disseram que ele foi mal interpretado e colocaram-no na geladeira.
Temer
vem aplicando um pacote de medidas, atendendo demandas de parte das
grandes empresas e do mercado financeiro, que ajudam a sustentar seu
governo. Eles estão felizes. Afinal, tem sido cumprido o objetivo de dar
um empurrão na economia, jogando a fatura nas costas dos mais
vulneráveis (Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização Ampla, PEC do
Teto dos Gastos e, quiçá, uma Reforma da Previdência 2.0). Evita-se,
assim, atingir os mais ricos, taxando os dividendos recebidos de
empresas e criando alíquotas maiores do Imposto de Renda para quem ganha
muito.
Satisfeitos também estão os velhos políticos. Que veem na
manutenção de Temer uma forma de proteção à guilhotina da Lava Jato, e,
principalmente, uma possibilidade de mais pilhagem sobre o tesouro
público, de perdões bilionários de suas dívidas e de seus patrocinadores
e de um atalho para mudanças legislativas e medidas executivas – que
não apenas rasgam a Constituição Federal de 1988, mas também nos
devolvem ao Brasil Império.
Já que vivemos em um regime político
que se assemelha à democracia, em uma forma de governo que se assemelha à
República, por que não acabar com a fantasia e assumir o que nós somos
de verdade? Um grande latifúndio, governado por senhores de engenho
religiosamente hipócritas, com suas regras, punições e sacanagens.