O professor em direito previdenciário *Fábio Zambitte Ibrahim, publicou
artigo sobre a Reforma da Previdência na coluna/Previdencialhas em sua análise
diz: “A crítica, novamente, é verdadeira.
Nota-se, pelo próprio discurso governamental, que a reforma atua quase que
exclusivamente voltada a objetivos macroeconômicos, sem observar a realidade da
clientela protegida. A proposta vigente possui vários exemplos nesse sentido,
como o aumento desproporcional do tempo mínimo de contribuição para fins de
aposentadoria, o que inviabilizaria a prestação para boa parte da clientela
protegida. Essa forma de "utilitarismo previdenciário" não pode ser
tolerada.”...Leia mais abaixo....
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O RELATÓRIO FINAL DA CPI DA PREVIDÊNCIA E A REFORMA
Fábio Zambitte Ibrahim
O relatório final da CPI da Previdência e a reforma.
Segunda-feira, 13/11/2017
Como divulgado pelo Senado Federal, a CPI da Previdência produziu seu relatório final.
Após meses de debates e pesquisas, com o confronto de números oficiais e
opiniões de diversos especialistas, concluiu-se que o modelo protetivo
brasileiro é superavitário. Na visão da CPI, o discurso governamental do
déficit é repleto de erros contábeis e conceituais.
Em apertada
síntese, o relatório produz diversas páginas discorrendo sobre a
dilapidação do patrimônio pretérito da previdência social, ausência de
recolhimentos devidos pela União, sonegação, dívidas bilionárias
inadimplidas, contabilização equivocada de receitas e despesas, indevida
desvinculação das receitas da União – DRU, além das diversas renúncias
fiscais existentes na legislação brasileira.
O seguinte parágrafo é emblemático:
"Com todo esse complexo cenário, falar simplesmente de déficit da Previdência, a partir do comportamento das receitas e despesas atuais da seguridade social como um todo, é mitigar a realidade. Ao desconsiderar as práticas do Estado, que durante todo o período de existência da previdência retirou recursos, esvaziou suas receitas, protegeu inadimplentes e ainda financiou projetos de construção e mesmo, mais recentemente, políticas rentistas de pagamento de juros, o debate meramente atuarial sobre déficit ou superávit da previdência perde essência e conteúdo, e a discussão sobre o tema deve se constituir em outros parâmetros, como procuraremos demonstrar neste relatório". (pp. 41 e 42)
A crítica é dura
e, em grande medida, verdadeira. É indiscutível que o governo Federal,
desde a criação dos institutos de aposentadorias e pensões, a partir de
1930, vem sistematicamente aviltando o patrimônio do sistema
previdenciário, com investimentos variados, alguns até relevantes, mas
sem compromisso com a cobertura de segurados e dependentes. Igualmente
acertada a crítica quanto às contraditórias sinalizações governamentais,
até os dias de hoje, bradando a necessidade de reforma e, ao mesmo
tempo, ampliando renúncias fiscais e benesses variadas a determinados
setores.
Não reproduzo os
valores – detalhadamente retratados no Relatório Final – mas as quantias
são indiscutivelmente vultosas e, se realizadas, seriam fonte de
equilíbrio do sistema previdenciário durante muitos anos. Essa questão
está fora de dúvida. Todavia, concluir, com isso, pela desnecessidade de
qualquer reforma previdenciária, em minha opinião, é grave equívoco.
O desvio de
receitas do sistema previdenciário é apontado desde longa data,
retratando o descaso estatal com o equilíbrio financeiro de nosso modelo
protetivo. O mesmo vale para as omissões estatais quanto a suas
contribuições irrealizadas. No entanto, como solucionar isso? Tais
percepções, hoje, possuem, no máximo, interesse histórico e mesmo
pedagógico, impondo aos gestores públicos maior responsabilidade na
gestão previdenciária. Nada mais.
Temos de perceber
que qualquer encargo do Estado é, na verdade, ônus da sociedade, pois
no Estado de Direito contemporâneo a principal fonte de receita é
oriunda dos tributos. Não por outro motivo a Constituição de 1988,
didaticamente, afirma que a seguridade social é financiada pela
sociedade, de forma direta ou indireta (art. 195, caput).
Da
mesma forma, muitas renúncias fiscais decorrem de opções da Assembleia
Nacional Constituinte, dificilmente modificáveis na atualidade. O mesmo
se diga sobre o passivo bilionário de empresas falidas; créditos
previdenciários de papel que nunca serão realizados.
Não se ignora que
o Relatório Final traz alguma luz à discussão, opinando sobre questões
que podem, sem sombra de dúvida, passar por revisão legislativa e
respectivo incremento de receita. O combate à DRU, desonerações da folha
e privilégios de determinados segmentos econômicos são corretamente
apresentados e desenvolvidos. Tais correções seguramente propiciariam
melhoras no equilíbrio financeiro do sistema, potencialmente tornando-o
superavitário, mas, ainda assim, desprovido do equilíbrio atuarial
desejado pela CF/88.
Como tenho dito
nos últimos anos, o sistema brasileiro é desprovido de equilíbrio
atuarial, o qual somente foi efetivamente quantificado, em parâmetros
adequados, por ocasião da edição da extinta Lei Orgânica da Previdência
Social – LOPS, em 1960. Desde então, a discussão limita-se a parâmetros
financeiros, exclusivamente. A situação demográfica brasileira é
preocupante, pois conjuga acelerado envelhecimento com retração de
natalidade severa – receita para o desastre em modelos de repartição.
Ademais, vivemos
hoje o chamado "bônus demográfico", no qual a maior parte da população é
composta por jovens e adultos, que são as pessoas que financiam o
sistema e, em regra, não o utilizam. Em tal contexto, o apontado
superávit financeiro deveria ser muito maior. Essa realidade será
alterada em poucos decênios, impondo carga tributária cada vez maior
sobre a geração ativa. A necessidade de revisão do modelo é imperativa.
Por outro lado,
acerta novamente o Relatório Final ao afirmar que a reforma proposta
possui finalidade estritamente econômica, descurando de seu objetivo
final, que é a proteção da clientela coberta. Nesse sentido, faço
referência ao seguinte parágrafo:
"Em várias exposições e falas, reverberadas em diversos documentos, é possível inferir de forma categórica que a grande vontade por parte da União em frequentemente promover reformas no sistema previdenciário brasileiro, vai além do cuidado com as gerações futuras, mas muito mais em garantir margens cada vez maiores de recursos financeiros para a sua gestão, com destinação distinta a que a contribuição está vinculada. Tal linha de raciocínio é muito singela: o governo federal tem interesse nos recursos da seguridade social, pois são recursos que constitucionalmente a União não é obrigada a repartir com os outros Entes da Federação (p. 139)".
A crítica,
novamente, é verdadeira. Nota-se, pelo próprio discurso governamental,
que a reforma atua quase que exclusivamente voltada a objetivos
macroeconômicos, sem observar a realidade da clientela protegida. A
proposta vigente possui vários exemplos nesse sentido, como o aumento
desproporcional do tempo mínimo de contribuição para fins de
aposentadoria, o que inviabilizaria a prestação para boa parte da
clientela protegida. Essa forma de "utilitarismo previdenciário" não
pode ser tolerada.
A previdência
social é um dos instrumentos mais relevantes na garantia da existência
digna. Ignorar tal aspecto implica incorrer em retrocesso inadmissível,
tendo em vista a exaltação da dignidade humana como fundamento do Estado
brasileiro. Independente da ideologia de cada um, todos desejam que o
Estado seja capaz de fazer mais com menos, mas isso deve ser alcançado
em estrita observância aos direitos fundamentais.
Não se trata de
adotar discursos panfletários e descompromissados com a realidade. Muito
menos combater a economia de mercado, mas, simplesmente, a percepção de
que ambos os objetivos devem ser conjugados: a busca perene do
equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário e, também, a
manutenção da vida digna. Formado tal consenso, quem sabe, seremos
capazes de construir um modelo previdenciário equilibrado e justo.
*Fábio Zambitte Ibrahim é advogado, professor titular de
Direito Previdenciário e Tributário do Instituto Brasileiro de Mercado
de Capitais (IBMEC), professor adjunto de Direito Financeiro da UERJ,
professor e coordenador de Direito Previdenciário da Escola de
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Doutor em Direito
Público pela UERJ, mestre em Direito pela PUC/SP. Foi auditor fiscal da
Secretaria de Receita Federal do Brasil e presidente da 10ª Junta de
Recursos do Ministério da Previdência Social.
Fonte: Migalhas